O futebol é maior que a humanidade?

Gabriel Sawaf
7 min readMay 9, 2020

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Arquibancadas do Couto Pereira vazias para o clássico Athletiba. Partida foi a última em Curitiba antes da paralisação do futebol por conta da pandemia. Foto: Gabriel Sawaf.

Em junho de 1974, João Havelange assumiu a Fédération Internationale de Football Association (Fifa) com a promessa de “vender um produto chamado futebol.” O esporte já era profissional desde a década de 30 nos principais países em que era disputado, mas seu verdadeiro potencial financeiro nunca havia sido explorado.

A promessa foi cumprida e, como descreve Eduardo Galeano em seu livro “Futebol ao sol e à sombra”, Havelange fez da Copa do Mundo, principal competição da Fifa, um sucesso financeiro. “Em seu mandato, dobrou a quantidade de países nos campeonatos mundiais, eram dezesseis em 1978, serão 32 em 1998. E pelo que se pode adivinhar através da neblina dos balanços, os lucros que esses torneios rendem multiplicaram-se tão prodigiosamente que aquele famoso milagre bíblico, o dos pães e dos peixes, parece piada.”

Apesar de suas adversidades e diversos casos de corrupção, hoje o futebol é uma das atividades mais rentáveis do mundo, mesmo que a grande maioria que o pratique de forma profissional não nade em rios de dinheiro. É, ainda, a maior possibilidade de ascensão social para milhares de meninos e meninas que veem na bola a chance de ter uma vida melhor no futuro e também para os seu familiares.

E agora, quase cinco décadas depois da promessa de Havelange, no ano de 2020, colhemos os frutos mais podres possíveis. É verdade que já temos muitas consequências negativas no futebol: os escândalos de corrupção já citados, monopólio de empresas em algumas equipes e o inflacionamento do mercado, com transferências que quase chegam a marca de um bilhão de reais, valor superior ao Produto Interno Bruto (PIB) de alguns países.

Só que a percepção do nível de ruindade que o futebol pode atingir chegou a um nível imoral nestes períodos de pandemia. O mundo ainda não se recuperou, as pessoas enterram seus familiares, os hospitais seguem lotados e multidões imploram por vagas nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI’s). Em alguns lugares o sistema de saúde já entra em total colapso. Além disso, comerciantes não podem trabalhar e a ameaça da fome e outras necessidades aparecem na vida das pessoas.

E no que os barões do futebol destinam a sua preocupação? Ao retorno do esporte em meio a pandemia. Não falamos aqui em projeções, porque é evidente que, em algum momento, os jogos terão que voltar e para isso ocorrer um planejamento terá que ser feito. Só que as coisas fogem totalmente de curso quando o retorno é pensando no meio do caos. Como se o esporte vivesse em um mundo a parte, em uma sociedade a parte, na imaginação de seus belos dirigentes.

No dia em que o Brasil registrou o recorde de mortes em 24 horas, 751, surgiu uma notícia que 14 dos 16 clubes que disputam o Campeonato Carioca, juntos com a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (Ferj), encaminharam um comunicado às autoridades de saúde do estado que solicita o retorno da prática do esporte. Entre os clubes cariocas, somente Botafogo e Fluminense foram decentes e não se incluíram neste barco furado. Na mesma data, o estado do Rio passou São Paulo no número de mortos.

Um dos clubes, o Flamengo, divulgou que 38 funcionários testaram positivo para o Covid, além dos óbitos de um massagista que trabalhava no clube há 40 anos e da mãe de um atleta da base. Mesmo assim, o escrete da Gávea parece ignorar os fatos e pede o retorno das atividades. No Rio Grande do Sul, a dupla Grêmio e Internacional retornou aos treinos na última segunda (4), em cenas que pareciam de filmes apocalípticos. No lado Tricolor da capital gaúcha, o jogador Diego Souza foi detectado com a doença.

Grêmio voltou as atividades no dia 4 de maio. Pela imagem, as condições não parecem muito favoráveis para a prática do futebol. Foto: Divulgação Grêmio.

Ironicamente, clubes que tem condições financeiras inferiores aos que defendem o retorno do futebol solicitam auxílio e não a volta das partidas. Nos últimos dias, times que disputam a segunda divisão dos campeonatos estaduais, uma realidade totalmente obscura para muitos escretes grande do Brasil, enviaram uma carta em que solicitam apoio da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). O órgão nacional já anunciou um auxilio aos clubes que disputam o Campeonato Brasileiro das séries A, B, C e D além das duas divisões do campeonato feminino.

No mundo, alguns países, que conseguiram trabalhar bem no combate ao vírus, como a Coréia do Sul, já retornaram com seus campeonatos. Só que isso provoca uma corrida inútil pelo recomeço em demais lugares. Na França, onde o campeonato de 2019/20 foi encerrado, o Lyon entrou na justiça para que a liga tenha um término nos gramados. Na Alemanha, onde dois terços da população se mostra contra o retorno do esporte, a Bundesliga já anunciou o reinicio do campeonato para o próximo dia 15. Na Inglaterra, que trabalha para a volta dos jogos, clubes que são contra a loucura são ameaçados de punições.

E fica a pergunta: por quê? Por que atropelar tudo como se o mundo não sobrevivesse sem futebol? Por que apressar o que precisa ser resolvido de maneira calma? Por que ignorar tudo que acontece no mundo neste período para ver um jogo de futebol? Desde quando o futebol é tão essencial que precisa ultrapassar as necessidades humanas no momento?

Então chegamos ao vínculo com a revolução promovida por Havelange nos anos 70. A preocupação é com o dinheiro, não pelo salários dos atletas, mas pelo investimento que há no esporte. O ex-zagueiro italiano Maldini, declarou que a não conclusão do Calccio seria uma tragédia financeira para os clubes italianos.

A ganancia de ver o futebol como um negócio, que é o certo, chegou a um nível de transformá-lo em algo superior à humanidade. E neste contexto existem alguns pontos a serem colocados para vermos como a economia do futebol não pode ultrapassar a vida das pessoas.

O primeiro ponto é a própria pandemia. Vários especialistas apontam a partida entre Atalanta x Valencia, válida pelas oitavas de final da Champions League, no dia 19 de fevereiro, funcionou como uma “bomba-relógio” para o início dos casos na Itália, e dali se propagou para o mundo todo. Na ocasião, cerca de 40 mil pessoas viajaram de Bérgamo, cidade da equipe italiana e que registrou o primeiro surto de Corona Vírus no país, até Milão, onde ocorreu a partida. O estádio da Nerazzurri não possui a capacidade mínima exigida pela UEFA para jogos da fase eliminatórias da Champions, uma das regras mais estúpidas do futebol.

O segundo é a própria condição humana do jogo. Em sua descrição sobre a Copa do Mundo de 2002, o escritor brasileiro Ernani Ssó relata jogos de futebol que foram feitos com robôs na cidade japonesa de Fukuoka. “Qual é o sonho mais frequente dos empresários, do tecnocratas, dos burocratas e dos ideólogos da indústria de futebol? No sonho, cada vez mais semelhantes à realidade, os jogadores imitam robôs”, destaca Ssó.

Na época, o escritor falava sobre a queda do nível de jogo, o qual perdeu a criatividade ao longos dos anos. Mas os dirigentes hoje enxergam os jogadores como robôs por considerarem os mesmos imunes à pandemia. O presidente Jair Bolsonaro chegou a dizer que os jogos podem voltar porque os jogadores tem menos risco de morrer.

Este jornalista que vos escreve esteve presente no jogo entre Coritiba x Athletico, válido pela última rodada da primeira fase do Paranaense 2020, que teve portões fechados, e não encostou na bola. Não só eu, mas diversas pessoas trabalham em jogos de futebol, mesmo que ele não tenha torcida. Será que a cegueira pelo retorno dos jogos ignora todas as pessoas que trabalham numa partida?

A matemática não é difícil. São vários funcionários entre comissão técnica, seguranças, imprensa, federação, também próprio clube e assim vai. Além do contato entre os jogadores no campo. Será que é necessário colocar em risco a saúde de tantas pessoas e suas famílias para que uma bola role? Sem contar que a partida sem torcedores na arquibancada não garante em nada que não haverá aglomerações. Em Paris, cerca de três mil torcedores acompanharam o jogo entre PSG x Borussia Dordmund do lado de fora do estádio. Além daqueles que se reúnem para ver os jogos em suas casas com amigos e familiares.

O terceiro ponto engloba muito a realidade implantada por Havelange. Nunca no futebol moderno houve uma crise em escala mundial como esta. Tal fato só pode ser comparado, no esporte, com a Segunda Guerra Mundial, na qual houve o cancelamento de duas Copas do Mundo. Na época, principalmente em 1946, o torneio não foi realizado porque muitos atletas tinham lutado na guerra e havia muitos danos financeiros em global.

Óbvio que o cenário de uma guerra é diferente, principalmente a tensão entre países. Mas vemos o mundo todo numa crise, não só futebol, e pessoas envolvidas com o esporte sendo atingidas pela pandemia. Será que o futebol vive em uma realidade diferente onde é mais essencial gastar milhões de dólares em procedimentos para o retorno do esporte do que usar esta mesma grana para auxiliar lugares mais necessitados? Também é necessário colocar tantos atletas em risco?

Foto: Gabriel Sawaf

No fim, temos que lembrar do que o futebol é, para a maior parte das pessoas: entretenimento. Um jogo ressalta a paixão e mostra a grandeza do esporte. Assistir uma partida ou jogar com os amigos é algo que faz parte da vida de todos, nem que seja a cada quatro anos. Só que temos que ser realistas: o futebol não é essencial agora. Essencial é a saúde se recuperar, as pessoas se recuperarem, para que no fim, o esporte seja uma grande forma de festejo para celebrar a nossa vida.

Agora é a hora de lembrar das glórias antigas, se divertir com as reprises e ouvir histórias de quem acompanhou na época, ou finge que acompanhou. Não precisamos nos apressar, não podemos querer que a paixão seja maior que a realidade, que as coisas sejam adiantadas por algo que não importa agora. Afinal, neste momento, a frase mais odiada pelos apaixonados de futebol é a realidade: qual seria a graça de ver 11 homens atrás de uma bola?

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Gabriel Sawaf

28 anos. Jornalista. Curitiba. As vezes me sinto na obrigação de escrever o que sinto por aqui.